Você está visualizando atualmente Discussão: Ter razão ou silenciar?

“Que tua boca não se precipite e teu coração não se apresse.” Eclesiastes 5,1

Uma discussãozinha aqui ou acolá acontece, não é mesmo? Discordar de vez em quando sobre ir ou não à casa da sogra também vale! “Implicar com o meu futebol?” “Criticar meu entra e sai de lojas em shoppings centers?” “Com o tamanho da minha saia?” “Brigou só porque fiquei até mais tarde no happy hour com os meus amigos do trabalho?” “Epa! Tá entrando em terreno arenoso! Pode parar!” Vamos falar sobre discussões e diálogos?

Relacionamento amoroso é um tema complexo. Em que reside esta complexidade? Estamos falando de gente e cada um de nós é um verdadeiro microcosmo, um ser de tão amplos e diferentes aspectos, cujo estudo parece não ter fim. Quando juntamos, de forma intensiva e permanente, duas complexidades dessa natureza, como é o caso do relacionamento amoroso, as diferenças surgem, inevitavelmente. Neste artigo falarei dos conflitos do cotidiano, conflitos presentes no diálogo do casal, que quando muito frequentes ferem o vínculo. Mostrarei também formas de superar esses conflitos.

Constatando o conflito de ideias

Uma simples conversa de casal sobre qualquer assunto banal pode despertar opiniões e pontos de vista divergentes. Isso é natural. São duas pessoas, com diferentes histórias de vida, expectativas individuais, valores próprios, enfim, cada um é um indivíduo. Embora a convivência possibilite a formação de acordos e alianças, as diferenças continuam existindo. O casal aprende a conviver, a formar parcerias, a entrar em acordos, mas as diferenças continuam não se extinguem completamente. Podem amenizar ou intensificar, depende da história de cada casal.

Estamos falando de um casal, de duas pessoas que vivem juntas. Contudo, inevitavelmente as duas pessoas acessam informações diferentes, vivem experiências diferentes. Cada pessoa desse par conjuga as novas informações e experiências com uma bagagem cultural e emocional própria, cada um do seu jeito. Isso forma uma “biblioteca de opiniões”, ou uma “base de dados” racionais e emocionais individuais, que produzem opiniões e preferências diferentes.

Mesmo os casais que trabalham juntos e passam os momentos de folga em casa e fora de casa também em conjunto, mesmo os casais que são próximos e unidos: ainda assim surgem conflitos de ideias e opiniões. Começam a suspeitar se não seria porque passam muito tempo juntos, se isso não estaria gerando um stress no relacionamento. Não se trata disso. Ocorre que um mesmo estímulo, por exemplo um filme ou um telejornal, impacta de forma diferente cada um dos indivíduos. Nossa atenção é seletiva, nossas emoções também o são. A mesma experiência pode provocar reações e aprendizados bem distintos em cada pessoa. Primeira constatação: cada pessoa que forma o casal é um indivíduo único e diferente.

Estamos juntos, somos diferentes!

O casal pode celebrar alegremente a ideia de que “estamos juntos”, de que já enfrentaram e superaram muitas situações difíceis, crises financeiras, doenças, perdas familiares e tantas outras dificuldades. Tudo isso amalgamou uma relação sólida. Celebrar o “estamos juntos” deve vir acompanhado da realidade de que “continuamos diferentes”, cada um tem uma identidade própria e forma um casal com uma identidade que é a soma dos dois. Na verdade tem outros fatores nesta soma, mas fica para outra hora.

Quando surge a divergência, cada um tende a querer ser o dono da verdade, estar com a razão, estar certo, ter a melhor opinião. Defrontar-se com opiniões divergentes é um fenômeno que ocorre no encontro entre duas pessoas em qualquer situação: no convívio social, na família e acontece também no relacionamento do casal.

Este tema vale a pena?

Diante dessas situações, uma primeira avaliação que você poderá fazer é o que podemos chamar de “importância da pauta”. A divergência em questão é importante para você, para a sua vida amorosa, para a sua família, é relevante na sua vida? Há questões que envolvem a segurança material ou emocional sua ou de outras pessoas. Certas propostas envolvem riscos que você pode não estar com disposição para aceitar. Aqui estamos falando de pautas relevantes.

Na interação com o seu par, há diálogos sobre questões que não têm relevância para a vida do casal, nem para a vida individual de cada um de vocês. São conversas amenas ou ácidas, não importa, em que o resultado sendo “a” ou “b”, não muda em nada a vida de vocês. Para facilitar, imaginemos uma cena. O casal vê Joãozinho, conversa com ele, uma graça de menino! Saindo daquele encontro o marido diz: “nossa, Joãozinho é a cara da tia dele, a Mirtes”. A esposa retruca: “nada a ver! Com aquelas sobrancelhas pretas, ele se parece muito mais com a família do pai”. Pode ser que você já tenha enfrentado uma divergência de opinião irrelevante como esta, que resultou em algum tipo de ofensa ou mal-estar ao casal. Este é o exemplo de uma discussão sobre uma pauta insignificante.

Olhando para os relacionamentos, muitas são as situações em que acontecem divergências de opiniões de escolhas. A maior parte das situações que geram conflitos de opiniões ou escolhas são iniciadas por pautas irrelevantes. Esses pequenos atritos vão gerando pequenas feridas, a pequena ferida ainda nem cicatrizou e vem outro beliscão e depois outro e mais outro. Os pequenos arranhões, quando somados, formam uma grande ferida. Feridas que não foram curadas juntam-se a outras e acabam por estabelecer um desconforto, que de início é uma pequena névoa, mas com o tempo pode formar nuvem e tempestade. O copo vai enchendo devagar e depois basta uma gota d’água para o transbordamento. Daí surge aquela expressão que diz que o casal se separou por causa do tubo de creme dental que um deles deixou aberto sobre a pia.

O que você deseja, ter razão ou ser feliz?

Sabemos agora o que são pautas importantes e pautas irrelevantes. Se estão acontecendo frequentes embates no seu relacionamento amoroso, avalie sobre a importância das pautas. Os jargões populares revelam a sabedoria do povo. Podemos aprender com aquele jargão que indaga “você quer ter razão ou ser feliz?”. Você pode fazer a escolha, ganhar os debates, sentir o sabor da vitória, e desgastar o seu relacionamento por coisas pequenas, ou optar por ser feliz.

“Ser feliz” neste contexto implica optar pela manutenção de momentos confortáveis de convivência, em vez de sempre defender a sua opinião com unhas e dentes. Escolher não prosseguir na discussão inútil não significa reduzir-se ao silêncio, à aceitação incondicional da opinião do outro, ou à conformação a situações de submissão e desigualdade. Pelo contrário, as pessoas que desenvolvem a arte de desvencilhar-se de discussões inúteis são as pessoas mais maduras e eficientes nos relacionamentos e nos grupos. São pessoas que toleram manter sua opinião em silêncio, quando não é importante gastar energias para defendê-las. Essas pessoas reservam os seus talentos argumentativos e de convencimento para os conflitos significativos. Elas recebem o adjetivo de eficientes e inteligentes emocionais. Já as pessoas que vivem em debate por picuinhas são consideradas briguentas e imaturas.

Você também quer desenvolver este talento?

É importante falar sobre a capacidade de não entrar em discussões inúteis, porque é uma habilidade muito importante no relacionamento amoroso. Observe que essas pessoas talentosas conseguem negar sem dizer não, conseguem não dar prosseguimento à “pauta negativa” sem ser explícitas. Elas não dizem “ah! Deixa prá lá, esse assunto não interessa”. Isso poderia incomodar o interlocutor. Quem sabe fazer isso, usa de uma suavidade para mudar os rumos da conversa, de modo que o outro não se ofende. Se você não consegue agir assim, fique atento, certamente há pessoas ao seu redor que sabem fazer isso muito bem. Aprenda com elas. Comece não botando mais lenha na fogueira, prossiga com suaves mudanças de assunto, um toque ou um abraço ou um beijo “do nada” provocam uma total mudança de cena. Experimente. Você vai gostar.

Diante de pautas relevantes, o “ser feliz” do ditado popular acima também deve incluir a capacidade de estabelecer um diálogo produtivo, com o fim de convencer o outro sobre as nossas razões ou sobre os nossos desejos. Você não precisa perder todas as batalhas, nem deixar de comparecer a todas elas. Sair vitorioso de um debate aumenta a autoestima, revigora o nosso ser. Diálogo pressupõe falar, ouvir e escutar. Você poderá sair dele feliz porque venceu ou feliz porque o outro te apresentou argumentos tão bons que te fizeram mudar de ideia. É possível continuar bem com uma opinião transformada. Isso é flexibilidade.

O que realmente importa

Como vimos, o importante não é ter razão, ficar em silêncio, ganhar ou perder. Importa selecionar as discussões e divergências que vamos eleger como importantes e dignas de prosseguimento. Importa desenvolver os talentos e as habilidades interpessoais para se desvencilhar das discussões inúteis, importa desenvolver a capacidade do diálogo franco e maduro em busca do melhor resultado: que um aprenda com os argumentos do outro, de modo que os dois saiam enriquecidos: felizes porque passaram a comungar uma mesma perspectiva ou felizes porque agora compreendem as razões do outro e ambos podem tolerar pontos de vista diferentes. Afinal, vocês são, ao mesmo tempo, casal e indivíduos.

José Hamilton Ferreira

Psicólogo – José Ferreira CRP SP 36505